UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DOCENTE: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira
HORÁRIO: Quintas-feiras, das 16h15 às 18h45
HISTÓRIA CULTURAL DO CRISTIANISMO PRIMITIVO (PRIMEIRO E SEGUNDO SÉCULOS): QUESTÕES TEÓRICAS E ENSAIOS INTERPRETATIVOS
DISCIPLINA DO CATÁLOGO: EXERCÍCIOS EXEGÉTICOS


I – EMENTA:
Análise de textos bíblicos específicos (perícopes, capítulos, livros), canônicos e não canônicos, por meio de instrumental exegético e de outras metodologias oriundas das ciências da linguagem.


II – EMENTA ESPECÍFICA:
Apesar de toda a tradição exegética e teológica não há ainda muitos trabalhos acadêmicos que tenham oferecido uma visão histórica de conjunto satisfatória sobre o Cristianismo Primitivo (CP). Essa escassez é compreensível por dois motivos. O primeiro se refere ao fato de que história do cristianismo primitivo foi por muito tempo considerada como equivalente à história do Novo Testamento. Ou seja, basta estudar os livros que compõem o Novo Testamento para se ter acesso às informações históricas necessárias para a reconstrução do CP. Essa posição reflete os pressupostos de que a história equivale ao relato canônico e que as doutrinas e fatos históricos são passíveis de reconstrução a partir desse corpo documental. O segundo motivo é que, ainda que o CP tenha produzido textos (fontes escritas) desde suas origens, não é possível reconstruir a partir deles, de forma satisfatória, o papel ocupado pelas comunidades cristãs no mundo antigo, suas práticas, seu ethos social, seu desenvolvimento institucional, entre outros. Além de quase não haver evidencias materiais nos dois primeiros séculos, as fontes escritas são por demais fragmentárias e ficcionais. São fragmentárias no sentido de que cobrem apenas alguns aspectos da vida dos cristãos na sociedade greco-romana, em algumas regiões, e em perspectivas muito específicas. O elemento ficcional e imaginativo desses textos também conflita com os interesses de uma historiografia tradicional, interessada em fatos e instituições.


Nesse curso tentaremos oferecer alternativas para as dificuldades apontadas acima. Exploraremos exatamente o que é considerado lacunar das fontes, seu caráter fragmentário e ficcional, para nos perguntarmos pelas possibilidades de uma história cultural do CP. Com esse objetivo levantaremos as seguintes questões:


a) Seria possível examinar essas fontes a partir das perspectivas de seus gêneros literários? Os elementos imaginativos dos textos nos permitem estudar as categorias mentais com que grupos de cristãos concebem o mundo?


b) Não seria necessário, dada a fragmentariedade das fontes do CP, e dado o escopo de uma história cultural (estruturas de longa duração), ampliar a cronologia do estudo e o corpus documental? Não deveriam ser incluídos aí os textos apócrifos e textos patrísticos até o terceiro século adentro?


c) Como inserir em estudos de história cultural a diversidade de grupos e tendências no CP, sem recair numa consideração atomista? É possível estudar os grupos considerados como “heréticos” como em conflito com outros grupos internos, mas inseridos na rede de discursos do CP?


d) É possível resgatar memórias de práticas religiosas ao invés de ceder ao primado do doutrinal? Como resgatar e reconstruir hipoteticamente práticas mágicas, litúrgicas, ethos social, entre outros aspectos, a partir de textos de propaganda ou de caráter apologético? Como essas práticas religiosas coexistem com os elementos catequéticos e doutrinais de superfície, ainda mais quando podem estar em contradição com os mesmos?


e) Como estudar o CP como movimento religioso no Império Romano, sem repetir a prática teológica de considerá-lo como novidade absoluta? A despeito de suas tensões com a sociedade e com suas representações de poder, o Cristianismo se desenvolve como um movimento religioso da sociedade mediterrânea e nela teve que promover incessantes negociações.
Essas e outras questões nos conduzirão em nossa investigação. Nosso trabalho é inspirado em estudos que adotam perspectivas diversas, mas complementares:


a) Uma história literária e doutrinária do Cristianismo Primitivo. Citamos apenas como paradigmas algumas obras: Introdução ao Novo Testamento, volume 2, de Helmut Köster, que, apesar de refletir no nome uma introdução literária tradicional, oferece uma visão de conjunto de desenvolvimentos institucionais, expansão geográfica, produção literária e doutrinal. Também merece destaque a monumental Theologiegeschichte des Urchristentums (História da Teologia do Cristianismo Primitivo) de Klaus Berger, que oferece uma detalhada análise das diferentes posições doutrinárias dos diversos grupos e correntes do cristianismo no primeiro século. Mais recentemente se destacaram obras que abordam as origens e trajetórias de devoção religiosa no Cristianismo Primitivo. Entre elas destacamos How Jesus Became God: The Exaltation of a Jewish Preacher from Galilee de Bart Ehrman e a muito debatida obra Lord Jesus Christ. Devotion to Jesus in Earliest Christianity, de Larry Hurtado. Nessas obras, no entanto, ainda nos encontramos no âmbito de história de ideias e doutrinas.


b) Propostas de interpretação teórica (cognitiva, entre outras) do Cristianismo Primitivo. Como modelo dessa abordagem nos referimos às obras de Gerd Theissen, Die Religion der Ersten Christen. Eine Theorie des Urchristentums (A Religião dos Primeiros Cristãos: Uma Teoria do Cristianismo Primitivo) e Erleben und Verhalten der ersten Christen. Eine Psychologie des Urchristentums (Experiência e Comportamento dos Primeiros Cristãos. Uma Psicologia do Cristianismo Primitivo). A essas duas soma-se a pioneira Psicologia Histórica do Novo Testamento de Klaus Berger.


c) Há outro projeto que oferece uma contribuição promissora na análise da temática, intitulado: A People’s History of Christianity, projeto coordenado por Denis R. Janz, que dedicou seus dois primeiros volumes ao Cristianismo nos primeiros séculos: Christian Origins e Late Ancient Christianity. Eles são coordenados por Richard Horsley e por Virginia Burrus, respectivamente. Esses volumes estão mais interessados numa história de cristãos do que numa história da igreja, mais em práticas religiosas do que em história de teologias. Nos diferentes ensaios são apresentados temas como: ficção, magia, mulheres, crianças, práticas litúrgicas, construção de identidades. Esses estudos se encontram na esteira de trabalhos inovadores da área que não estudam o cristianismo isoladamente, mas como parte de redes discursivas do Império Romano, utilizando-se de conceitos críticos das ciências da linguagem, dos estudos culturais e de gênero. Merecem destaque entre os expoentes nessa perspectiva os estudos de Judith Perkins: The Suffering Self e Roman Imperial Identities in the Early Christian Era, entre outros trabalhos.
d) Na América Latina e no Brasil foram também realizados esforços no sentido de estudar a pluralidade do Cristianismo Primitivo. Vale destacar os números da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana: Cristianismos Originários (nº 22) e Cristianismos Originários Extra-Palestinos (nº 29). Esses trabalhos seminais foram depois desenvolvidos em numerosos artigos. Também vale lembrar que esses ensaios ainda não refletem um esforço de elaboração de uma história cultural. Há intuições aqui e ali, principalmente nas questões de gênero e de etnia, mas não um projeto coeso, prevalecendo uma tendência historiográfica tradicional. Na área dos estudos da religião do Antigo Israel, no entanto, há um trabalho pioneiro: Uma História Cultural de Israel, de Júlio Zabatiero.


Apesar do valor de todas as perspectivas acima apontadas, e pela abrangência da proposta, entendemos que uma história cultural do CP ainda está por ser feita. Discutir os pressupostos e o referencial teórico, elencar temas e cortes possíveis, e promover ensaios, nos aliando a esforços empreendidos, são os nossos objetivos. Especialistas em religião que provêm de contextos profundamente marcados por experiências e práticas religiosas sincréticas e das mais diferentes configurações e origens, como é o caso dos intérpretes brasileiros, certamente têm algo a contribuir nessa perspectiva.


III – CRONOGRAMA
1) Introdução e planejamento
PARTE A – Modelos de abordagem


2) Questões teórico-metodológicas para uma História Cultural do Cristianismo Primitivo
3) Categorias mentais e psicologia histórica (Theissen e Berger).
4) O Cristianismo como sistema semiótico autônomo? (Theissen)
5) O Cristianismo e as construções discursivas do Império Romano. (Perkins)
6) Uma história de práticas religiosas populares no Cristianismo Primitivo.

  • O que é “aderir”, “se converter”, a um culto no mundo antigo? Que implicações isso têm? Explorar “hipótese das múltiplas pertenças”. (adaptação das teses de Shaye Cohen)
    PARTE B – Ensaios
    7) Geografia imaginária e construção de mundo.
    8) Os primeiros cristãos e os espaços urbanos do Império Romano.
    9) Os limites do corpo: sexo e morte.
    10) Palavra e conhecimento: da palavra profética ao sonho.
    PARTE C – Seminários discentes
    11) a 15)

    IV – METODOLOGIA E AVALIAÇÃO
    O curso consistirá, nas duas primeiras partes, de exposições de ensaios do docente, seguidos de discussão com o grupo. Também haverá na última parte seminários a serem apresentados em grupo pelos discentes e previamente preparados sob a orientação do docente.
    V- BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
    Berger, Klaus. Psicologia histórica do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2011.
    Berger, Klaus. Theologiegeschichte des Urchristentums. Theologie des Neuen Testaments. Tübingen: UTB, 1994, 746p.
    Bonneau, G. Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003. 297p. Boyarin, Daniel. Dying for God: Martyrdom and the Making of Christianity and Judaism. Stanford University Press, 2009.
    Boyarin, Daniel. Martyrdom and the Making of Christianity and Judaism. Journal of Early Christian Studies, Volume 6, Number 4, Winter 1998, p. 577-627.
    Brown. Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
    Burke, História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2000.
    Burke, Peter. O que é história cultural? Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
    Burrus, Virginia (Ed.). Late Ancient Christianity (A People’s History of Christianity). Minneapolis: Fortress Press, 2005.
    Burrus, Virginia. Word and Flesh: The Bodies and Sexuality of Ascetic Women in Christian Antiquity. Journal of Feminist Studies in Religion, Vol. 10, No. 1 (Spring, 1994), p. 27-51. Castelli, Elizabeth. Martyrdom and Memory: Early Christian Culture Making (Gender, Theory, and Religion). Columbia University Press, 2007.
    Cohen, Shaye J.D. The Beginnings of Jewishness. Boundaries, Varieties, Uncertainties. Berkeley: University of California, 1999, 426p.
    Cox Miller, Patricia. The Corporeal Imagination. Signifying the Holy in Late Ancient Christianity. University of Pennsylvania Press, 2009.
    Cristianismos Originários (30-70 d.C.), Pablo Richard (ed.), Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana 22 (1996). Petrópolis: Vozes.
    Cristianismos Originários Extra-palestinos (35-138 d.C.), Jorge Pixley (ed.), Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana 29 (1998). Petrópolis: Vozes.
    Crossan, J.D. The Birth of Christianity. Discovering what Happened in the Years Immediately after the Execution of Jesus. San Francisco, 1998, 656p.
    Cuche, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
    Gurevich, Aaron, J. Categories of Medieval Culture. London/Boston: Routledge & Kegan Paul, 1985.
    Gurevich, Aron. Medieval Popular Culture. Problems of Belief and Perception. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
    Guriévitch, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Anais. São Paulo: Perspectiva, 2003.
    Hurtado. Larry. Lord Jesus Christ. Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Grand Rapids: Eerdmans, 2003.
    Köster, H. Introdução ao Novo Testamento. Volume 2. São Paulo: Paulus, 2005.
    Meeks, W. A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992.
    Moss, Candida. Ancient Christian Martyrdom: Diverse Practices, Theologies, and Traditions. New Haven: Yale University Press, 2012.
    Nogueira, P. A. S. Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003. 244p.
    Perkins, Judith. Roman Imperial Identities in the Early Christian Era. Londres: Routledge, 2008.
    Perkins, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. London: Routledge, 1995.
    Piñero, A. (ed.) Origenes del Cristianismo. Antecedentes y primeros pasos. Cordoba: Cristiandad, 1995 (2ª ed.), 476p.
    Pixley, J. (ed.) A canonização dos escritos apostólicos. Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana 42/43 (2002). Petrópolis: Vozes.
    Rhee, Helen. Early Christian Literature. Christ and Culture in the Second and Third Centuries. New York: Routledge, 2005.
    Rowland, Chr. Christian Origins. An Account of the Setting and Character of the most Important Messianic Sect of Judaism. London: SCM, 2002 (2nd ed.), 451p.
    Theissen, Gerd. Die Religion der ersten Christen. Eine Theorie des Urchristentums. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2000.
    Theissen, Gerd. Erleben und Verhalten der ersten Christen. Eine Psychologie des Urchristentums. Gütersloh: Gütersloherverlagshaus, 2007.
    Zabatiero. Júlio P. T. Uma história cultural de Israel. São Paulo: Paulus, 2013.

    Programa de ensino disponível para download em: http://metodista.academia.edu/PauloNogueira

 

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